19 de maio de 2010

Nota Etnográfica sobre a Peregrainação ao Santuário de Divina Pastora/SE

Cristiane Batista dos Santos[1]

O ato de peregrinar consiste na realização de longos percursos, representando o momento em que os devotos se dispõem a caminhar com o objetivo de alcançar espaços sagrados. A peregrinação pode ser vista como uma ação de devoção; pode ter como objetivo o cumprimento de um voto; a obtenção de uma benção; ou até mesmo a expiação de pecados.  Neste texto apresento algumas considerações sobre a peregrinação realizada por milhares de fiéis ao Santuário da cidade de Divina Pastora, no terceiro domingo do mês de outubro. Este evento religioso atrai milhares de pessoas pertencentes a várias cidades circunvizinhas como: Aracaju, Riachuelo, Maruim, Santa Rosa de lima, Siriri, Nossa Senhora das Dores, Rosário do Catete, Itabaiana, etc. e também a outros estados, principalmente Alagoas e Bahia.  A Cidade de Divina Pastora está localizada a 39 km da capital Aracajuana. O santuário construído no século XIX foi tombado pelo IPHAN como Patrimônio Histórico Cultural desde 1943, motivo de orgulho para os fiéis que o frequentam, justamente por ser o local buscado pelos peregrinos em uma das mais notáveis manifestações de fé ocorrida no Estado de Sergipe. No sistema de crença católica Nossa Senhora Divina Pastora é assim chamada por ter se revelado sentada numa rocha, vestida como uma pastora e num local onde pastavam ovelhas. As primeiras manifestações da devoção a essa santa surgiram no século XVIII, em Servilha, Espanha, local onde teria aparecido pela primeira vez. A figura da pastora que cuida de seu rebanho com atenção e carinho simboliza o amor materno de Maria para com seus devotos. A imagem é cultuada em vários territórios da Espanha e da América Latina, tendo grande representatividade na Venezuela e também no Brasil.
 A peregrinação à cidade de Divina Pastora surgiu por iniciativa de um grupo de jovens universitários das faculdades de Aracaju que no dia 24 de agosto de 1958 se reuniram e viajaram de ônibus até a cidade de Riachuelo, onde iniciaram a pé a longa caminhada até o Santuário de Divina Pastora. A iniciativa desses jovens deu início a uma das principais solenidades católicas do Estado atraindo a atenção de autoridades religiosas e tornando a cidade de Divina Pastora em centro de peregrinação. O evento sofreu nos anos 60 uma interrupção devido ao afastamento, por motivos eclesiásticos, de um de seus maiores incentivadores, o Padre Luciano Cabral Duarte. Somente em 1971, ano em que o então padre tornou-se arcebispo de Aracaju, as caminhadas sagradas ressurgiram ainda com mais força tornando-se uma das maiores manifestações religiosas do Estado, situação que persiste até os dias atuais.  
Motivados por diversos fatores, desde cumprimento de votos, até obtenção de bênçãos, os fiéis seguem a pé o percurso de 9 km partindo da cidade de Riachuelo com destino à Divina pastora, no intuito de encontrar a imagem da santa e participar das celebrações na Igreja Matriz. O percurso é realizado por pessoas das mais diversas faixas etárias, compreendendo desde crianças até idosos. A estrada íngreme e o forte sol demandam esforço dos peregrinos para cumprir a caminhada.


Na peregrinação o sagrado apresenta-se como algo que está distante da realidade cotidiana dos indivíduos e por isto o fato se torna um evento de mobilização extraordinária, já que é preciso que os fiéis rompam com as atividades de seu cotidiano ingressando em uma temporalidade diferente da vivida até então. Turner chama a atenção para o caráter periférico dos centros de peregrinação e demonstra que independente de um município possuir ou estar próximo a um centro de peregrinação importante, seus habitantes, tendem a partir em busca de santuários distantes em vez de seguirem para aqueles mais próximos. Esse aspecto observado no processo peregrinatório é denominado pelo autor de teoria da perifericidade e se relaciona com o trabalho do etnólogo Van Gennep sobre os ritos de passagem.

Segundo Turner (2008:182), “Van Gennep demonstrou que muitos tipos de rituais, especialmente ritos de iniciação, possuem três fases distintas, de duração relativa variável dentro de e entre culturas, que ele descreveu como sendo: (1) separação, (2) margem ou limen e (3) reintegração”. Essas fases do rito de iniciação estabelecidas por Van Gennep são relacionadas com a perifericidade marcada dos santuários de peregrinação, devido à estrutura temporal do processo de peregrinação, que começa em um local familiar, seguindo para um local distante e voltando para um local familiar. Pode-se considerar o fenômeno religioso da peregrinação à Divina Pastora como um rito coletivo, que mobiliza os devotos, reaviva o sentimento de devoção e a crença no sobrenatural, na medida em que são ricos em significados que sustentam e dão continuidade a própria prática.


Os peregrinos perfazem o percurso individualmente ou em grupo de familiares, vizinhos, representantes de paróquias, etc. Muitas pessoas vestem roupas que são denominadas de mortalha, vestidura parecida com uma camisola, de cor roxa ou branca, usada pelos penitentes para pagar um voto. Alguns fazem o trajeto cantando e rezando em voz alta, outros apenas seguem calados, concentrados em uma prece introspectiva, outros ainda conversam sobre assuntos diversos, não religiosos. 
A maioria das pessoas carrega consigo sacolas contendo água e a refeição que deverá ser feita ao chegarem à cidade. Alguns peregrinos andam com terços, bíblias e outros objetos de cunho religioso nas mãos. No decorrer do caminho encontram-se barracas onde são comercializados alimentos e bebidas, muitos param para descasar e se alimentar nesses pontos. Encontram-se também várias faixas de boas vindas aos fiéis fixadas por personagens políticos e comerciantes da região que exploram a visibilidade da festa para fins comerciais e políticos.
O trecho final do percurso é o mais difícil de ser cumprido, pois se constitui de uma ladeira íngreme, aumentando o esforço no final da caminhada, porém devido à maior proximidade da realização de seu objetivo os peregrinos se mostram ainda mais motivados a alcançar o santuário e obter sua recompensa, encontrar com sua santa protetora. Segundo Turner (2008:195) “À medida que o indivíduo se aproxima do santo dos santos, os símbolos se tornam mais densos, mais ricos, mais envolventes – a própria imagem se codifica em unidades simbólicas repletas de significado cosmológico e teológico”. Nesse sentido todo o percurso realizado pelos devotos no decorrer da peregrinação, proporciona experiências e convívio com os diversos símbolos que atuam na mudança de sua condição interna. O aumento progressivo do esforço despendido pelo devoto faz com que o mesmo se sinta mais purificado elevando simbolicamente seu espírito para transpor-se do ambiente profano cotidiano para o encontro com o sagrado.
Finalizando o percurso os peregrinos adentram na cidade e vão se acomodando onde conseguem, procurando locais disponíveis para descansarem. A maioria dos indivíduos motivados pela fé vão diretamente ao encontro da imagem da santa, que está exposta logo na entrada da cidade, em um andor sobre uma mesa coberta por uma toalha branca e ornamentada com flores do campo, como se estivesse desejando boas-vindas aos fiéis que tanto se sacrificaram para ter aquele momento com ela. Participantes da organização controlam o fluxo de pessoas que se aproximam para tocá-la. Muitos peregrinos entregam objetos diversos e até crianças para que sejam aproximados da imagem. Alguns devotos se dirigem até um cruzeiro, localizado ao lado da imagem
da Divina Pastora, retirando suas mortalhas e amarrando-as no mesmo. Outros, claramente emocionados, apenas se ajoelham em torno dele, concentrando-se em uma prece tão introspectiva que apesar da grande aglomeração de pessoas ao seu redor, aparentam não perceber a multidão que pacientemente disputa consigo aquele espaço.


Os fiéis também não demonstram se incomodar com o barulho dos rojões, tipo de fogos de artifício, estourados como cumprimento de voto. Muitos acendem velas e fazem oferenda de vários objetos, principalmente chapéus de palha e flores do campo, ícones que caracterizam a vestimenta da santa. No centro da cidade o clima é de muita festa, caminhar pelas ruas é uma tarefa difícil devido ao imenso número de pessoas aglomeradas em todos os locais. Além disso, o comércio nesse dia é intenso, por todos os lados se encontram barracas estendidas com oferta de produtos diversos. Comerciantes perambulam o tempo todo oferecendo os seus produtos aos moradores, devotos e turistas. Inúmeros peregrinos dirigem-se à igreja Matriz de Divina Pastora durante
todo o dia. No altar da igreja também se encontram os organizadores do evento intermediando o fluxo de acesso à imagem da santa. É necessária paciência para vencer a grande fila e se aproximar. Enquanto alguns fiéis entregam objetos diversos aos organizadores para serem ofertados, outros apenas pedem que os itens entregues sejam tocados na im agem e posteriormente devolvidos, como se a imagem da Divina Pastora possuísse poder de purificar, abençoar transformando-os em amuletos de proteção. A movimentação de devotos se manteve constante até o encerramento do evento com a realização da missa campal na área externa da igreja.

Os aspectos devocionais desta experiência religiosa que implica em privações, alegria, dor, etc. nos convidam a refletir sobre as disposições e motivações induzidas pelos símbolos religiosos. Para Geertz (1978) os símbolos modelam e expressam o mundo “induzindo o crente a um conjunto de disposições (tendências, capacidade, propensões, habilidades, compromissos, inclinações) que emprestam um caráter profundo ao fluxo de sua atividade e à qualidade da sua experiência”p.109. A perspectiva religiosa é um modo de ver que transcende a vida cotidiana e se dirige a outras dimensões que a corrigem e complementam. Nos rituais, a exemplo da peregrinação ‘O mundo vivido e o mundo imaginário fundem-se sob a mediação de um conjunto de formas simbólicas, tornando-se um mundo único “(p.128).

[1] Estudante do Curso de Ciências Sociais/ UFS e integrante do Grupo de Pesquisa Ritual, Festa e Performance – CNPq/UFS


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar editores. 1978

TURNER, Victor. Dramas, Campos e Metáforas. A ação simbólica na sociedade humana. Niterói, EDUFF, 2008.

JÚNIOR, Péricles Morais Andrade; SANTOS, Magno Francisco de Jesus. O Rebanho da Pastora: a Peregrinação ao Santuário de Divina Pastora-SE (1958-2008). Revista da Fapese, v.5, n. 1, p. 57-78, jan./jun. 2009 < Disponível em: http://www.fapese.org.br/index.php?pagina=32> Acesso em 15 de março de 2010.

12 de maio de 2010

DOCUMENTÁRIO "SAUDADES DO BRASIL" - ESPECIAL CLAUDE LÉVI-STRAUSS

Este documentário foi exibido na Tv Senado. Traz uma entrevista inédita com o antropólogo Claude Levi-Strauss em Paris e depoimentos de Antonio Cândido, Jean Malaurie (editor de Tristes Trópicos), Manuela Carneiro, Eduardo Viveiros de Castro e outros. Tem ainda a participação especial de Caetano Veloso e da atriz Juliana Carneiro da Cunha. Direção de Maria Maia (2005). O arquivo está dividido em 5 partes.

(PARTE 2)

(PARTE 3)

(PARTE 4)

(PARTE 5)

6 de maio de 2010

NOTA DA DIRETORIA DA ABA SOBRE MATÉRIA PUBLICADA PELA REVISTA VEJA (VEJA ANO 43 Nº 18, DE 05/05/2010)


Frente à publicação de matéria intitulada "A farra da antropologia oportunista" (Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010), a diretoria da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em nome de seus associados, clama pelo exercício de jornalismo responsável, exigindo respeito à atuação profissional do quadro de antropólogos disponível no Brasil, formados pelos mais rigorosos cânones científicos e regidos por estritas diretrizes éticas, teóricas, epistemológicas e metodológicas, reconhecidas internacionalmente e avaliadas por pares da mais elevada estatura cientifica, bem como por autoridades de áreas afins. A ABA reserva-se ao direito de exigir dos editores da revista semanal Veja que publique matéria em desagravo pelo desrespeito generalizado aos profissionais e acadêmicos da área.
Nota da Comissão de Assuntos Indígenas-CAI/ABA

A reportagem divulgada pelo último número da revista Veja, provocativamente intitulada “Farra da Antropologia oportunista”, acarretou uma ampla e profunda indignação entre os antropólogos, especialmente aqueles que pesquisam e trabalham com temas relacionados aos povos indígenas. Dados quantitativos inteiramente equivocados e fantasiosos (como o de que menos de 10% das terras estariam livres para usos econômicos, pois 90% estariam em mãos de indígenas, quilombolas e unidades ambientais!!!) conjugam-se à sistemática deformação da atuação dos antropólogos em processos administrativos e jurídicos relativos a definição de terras indígenas.

Afirmações como a de que laudos e perícias seriam encomendados pela FUNAI a antropólogos das ONGs e pagos em função do número de indígenas e terras “identificadas” (!) são obviamente falsas e irresponsáveis. As perícias são contratações realizadas pelos juízes visando subsidiar técnica e cientificamente os casos em exame, como quaisquer out ras perícias usuais em procedimentos legais. Para isto o juiz seleciona currículos e se apóia na experiência da PGR e em consultas a ABA para a indicação de profissionais habilitados. Quando a FUNAI seleciona antropólogos para trabalhos antropológicos o faz seguindo os procedimentos e cautelas da administração pública. Os profissionais que realizam tais tarefas foram todos formados e treinados nas universidades e programas de pós-graduação existentes no país, como parte integrante do sistema brasileiro de ciência e tecnologia. A imagem que a reportagem tenta criar da política indigenista como uma verdadeira terra de ninguém, ao sabor do arbítrio e das negociatas, é um absurdo completo e tem apenas por finalidade deslegitimar o direito de coletividades anteriormente subalternizadas e marginalizadas.

Não há qualquer esforço em ser analítico, em ouvir os argumentos dos que ali foram violentamente criticados e ridicularizados. A maneira insultuosa com que são referidas diver sas lideranças indígenas e quilombolas, bem como truncadas as suas declarações, também surpreende e causa revolta. Subtítulos como “os novos canibais”, “macumbeiros de cocar”, “teatrinho na praia”, “made in Paraguai”, “os carambolas”, explicitam o desprezo e o preconceito com que foram tratadas tais pessoas. Enquanto nas criticas aos antropólogos raramente são mencionados nomes (possivelmente para não gerar demandas por direito de resposta), para os indígenas o tratamento ultrajante é na maioria das vezes individualizado e a pessoa agredida abertamente identificada. Algumas vezes até isto vem acompanhado de foto.

A linguagem utilizada é unicamente acusatória, servindo-se extensamente da chacota, da difamação e do desrespeito. As diversas situações abordadas foram tratadas com extrema superficialidade, as descrições de fatos assim como a colocação de adjetivos ocorreram sempre de modo totalmente genérico e descontextualizado, sem qualquer indicação de fontes. Um dos antropólogos citado como supostamente endossando o ponto de vista dos autores da reportagem afirmou taxativamente que não concorda e jamais disse o que a revista lhe atribuiu, considerando a matéria “repugnante”. O outro, que foi presidente da FUNAI por 4 anos, critica duramente a matéria e destaca igualmente que a citação dele feita corresponde a “uma frase impronunciada” e de “sentido desvirtuante” de sua própria visão. Como comenta ironicamente o jornalista Luciano Martins Costa, na edição de 03-05-2010 do Observatório da Imprensa, “Veja acaba de inventar a reserva de frases manipuladas”.

A agressão sofrida pelos antropólogos não é de maneira alguma nova nem os personagens envolvidos são desconhecidos. Um breve sobrevôo dos últimos anos evidencia isto. O antropólogo Stephen Baines em 2006 concedeu uma longa entrevista a Veja sobre os índios Waimiri-Atroari, população sobre a qual escrevera anos antes sua tese de doutoramento. A matéria não saiu, mas poucos meses depois, uma reportagem intitulada “Os Falsos Índios”, publicada em 29 de março de 2006, defendendo claramente os interesses das grandes mineradoras e empresas hidroelétricas em terras indígenas, inverteu de maneira grosseira as declarações do antropólogo (pg. 87). Apesar dos insistentes pedidos do antropólogo para retificação, sua carta de esclarecimento jamais foi publicada pela revista. O autor da entrevista não publicada e da reportagem era o Sr. Leonardo Coutinho, um dos autores da matéria divulgada na última semana pelo mesmo meio de comunicação.

Em 14-03-2007, na edição 1999, entre as pgs. 56 e 58, uma nova invectiva contra os indígenas foi realizada pela Veja, agora visando o povo Guarani e tendo como título “Made in Paraguai - A FUNAI tenta demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome". O autor era José Edward, parceiro de Leonardo Coutinho, na matéria citada no parágrafo anterior. Curiosamente um subtítulo foi repetido na matéria da semana passada - "Made In Paraguay”. O então presidente da ABA, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, solicitou o direito de resposta e encaminhou um texto à revista, que nem sequer lhe respondeu.

Poucos meses depois a revista Veja, em sua edição 2021, voltou à carga com grande sensacionalismo. A matéria de 15-08-2007 era intitulada “Crimes na Floresta – Muitas tribos brasileiras ainda matam crianças e a FUNAI nada faz para impedir o infanticídio” (pgs. 104-106). O subtítulo diz explicitamente que o infanticídio não teria sido abandonado pelos indígenas em razão do “apoio de antropólogos e a tolerância da FUNAI." A matéria novamente foi assinada pelo mesmo Leonardo Coutinho. Novamente o protesto da ABA foi ignorado pela revista e pode circular apenas através do site da entidade.

Em suma, jornalismo opinativo não pode significar um exercício impune da mentira nem práticas sistemáticas de detratação sem admissão de di reito de resposta. O mérito de uma opinião decorre de informação qualificada, de isenção e equilíbrio. Ao menos no que concerne aos indígenas as matérias elaboradas pela Veja, apenas requentam informações velhas, descontextualizadas e superficiais, assumindo as características de uma campanha, orquestrada sempre pelos mesmos figurantes, que procuram pela reiteração inculcar posturas preconceituosas na opinião pública.

No acima citado comentário do Observatório da Imprensa o jornalista Luciano Martins Costa aprendeu muito bem e expôs sinteticamente o argumento central da revista no que concerne a assuntos indígenas: “A revista afirma que existe uma organização altamente articulada que se dedica a congelar grandes fatias do território nacional, formada por organizações não governamentais e apoiada por antropólogos. Essa suposta "indústria da demarcação" seria a grande ameaça ao futuro do Brasil.” Este é o argumento constante que reúne não só a matéria da semana passada, ma s as intervenções anteriores da revista sobre o tema. Os elos de continuidade fazem lembrar uma verdadeira campanha.

Numa análise minuciosa desta revista, realizada em seu site, o jornalista Luis Nassif fala de uma perigosa proximidade entre lobistas e repórteres nas revistas classificadas como do estilo “neocon”. A presença de “reporteres de dossier” é uma outra característica deste tipo de revista. À luz destes comentários caberia atentar para a lista de situações onde a condição de indígenas é sistematicamente questionada pela revista. Aí aparecem os Anacés, que vivem no município de São Gonçalo do Amarante (onde está o porto de Pecem, no Ceará); os Guarani-M’bià, confrontados por uma proposta do mega-investidor Eike Batista de construção de um grande porto em Peruíbe, São Paulo; e os mesmos Guaranis de Morro dos Cavalos (SC), que lutam contra interesses poderosos, sendo qualificados como “paraguaios” (tal como, aliás, os seus parentes Kayowá e Nandevá do Mato G rosso do Sul, em confronto com o agro-negócio pelo reconhecimento de suas terras).

Como o objetivo último é enfraquecer os direitos indígenas (que naturalmente se materializam em disputas concretas muitas vezes com poderosos interesses privados), os alvos centrais destes ataques tornam-se os antropólogos, os líderes indígenas e os seus aliados (a matéria cita o Conselho Indigenista Missionário/CIMI por várias vezes e sempre de forma igualmente desrespeitosa e inadequada).

É neste sentido que a CAI vem expressar sua posição quanto a necessidade de uma responsabilização legal dos praticantes de tal jornalismo, processando-os por danos morais e difamação. Neste momento a Presidência da ABA, está em conjunto com seus assessores no campo jurídico, visando definir a estratégia processual de intervenção a seguir.

Dada a assimetria de recursos existentes, contamos com a mobilização dos antropólogos e de todos que se preocupam com a defesa dos direitos indígenas para , através de sites, listas na Internet, discussões e publicações variadas, vir a contribuir para o esclarecimento da opinião pública, anulando a ação nefasta das matérias mentirosas acima mencionadas. Que não devem ser vistas como episódios isolados, mas como manifestações de um poder abusivo que pretende inviabilizar o cumprimento de direitos constitucionais, abafando as vozes das coletividades subalternizadas e cerceando o livre debate e a reflexão dos cidadãos.

No que toca aos indígenas em especial a Veja tem exercitado com inteira impunidade o direito de desinformar a opinião pública, realimentar velhos estigmas e preconceitos, e inculcar argumentos de encomenda que não resistem a qualquer exame ou discussão.


João Pacheco de Oliveira
Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas/CAI
Para correspondência:
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Associação Brasileira de Antropologia
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